30 de março de 2010

ai este país...

"Às vezes tenho vergonha deste país de estradas assassinas, onde morrem aos três e aos quatro à vez, onde se bebe mais que a conta, porque a viagem era curta e nem sequer valia a pena pôr o cinto, quanto mais ter um seguro. Um país onde fim-de-semana sem bola é fim-de-semana perdido, pegar num livro, nem pensar, que tem demasiadas folhas e palavras para mastigar. Diz que a cultura está cara, o teatro é um luxo, mas olha o Coliseu tão cheio para adorar as Floribelas desta vida. Um país que não aguenta três pingos de água, tudo se entope, e quem não tem um barco nao vinga. Se chove, vão-se as colheitas. Se faz sol, também. Depois chega o Verão e sentamo-nos frente ao ecrã. País em Chamas é o filme. Parte 25. O país dos inquéritos pós-desgraça, das providências cautelares, do para o ano é que isto se resolve, das investigações megalómanas, tão injusticeiras, que, invariavelmente, caem em saco roto. O país dos conformados, subservientes, do "vai-se andando, como Deus quer", do cafezinho, do copinho d'água, do se não for incómodo. O país dos feriados e das pontes, abençoados sejam, que tanto jeito dão para ir à terra, porque as horas de emprego são muitas, as de trabalho, nem tanto. Da violência. Infantil, doméstica, de homens contra mulheres, de mulheres contra homens, dos jovens e dos velhinhos. O país do salário mínimo mais mínimo, das cambalhotas orçamentais para que chegue para o passe, para as contas, pró tabaco, para a PlayStation do mais novo e para uma esmola semanal ao pobrezinho de estimação, tudo para a remissão dos pecados. (...) O país do não ao aborto, tão feio e pecaminoso, antes ter 12 filhos e não ter que lhes vestir. O país da televisão fácil, da piada fácil, do choro fácil, do pensamento fácil, porque os gostos educam-se, e a educação é uma prioridade governamental, mas ninguém está para aí virado. Dos centros comerciais que surgem como cogumelos (...). O país das auto-estradas de gosto duvidoso, que atropelam casas e o pouco verde que há (...). O país em que os bons emigram, espertos, porque para ser reconhecido aqui há que o ser primeiro em Madrid, Londres, Nova Iorque, Lanzarote. O país do jet-set decadente, alpinista, oportunista, cor-de-rosa escuro, muito escuro (...). O país das cunhas, da ascensão directa e horizontal. (...)"
Ana Garcia Martins, A Pipoca Mais Doce.

Uma crónica, sem dúvida, peculiar.

Sem comentários: